segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Entrevista de Sofia Trindade a Pedro Sena Nunes - 13 Dezembro 2009


• Considera que a introdução da ficção no documentário o torna mais comercial e o dirige numa vertente de entretenimento?

Essa provavelmente será a tendência natural, mas não me identifico com essa dinâmica. Parece-me que se avizinha uma fronteira cada vez mais ténue entre documentário e ficção, caminhos para um género misto, que associa os dois territórios, o chamado docu-drama.

Esta é uma nova fase, parece que nos induz a pensar que o cinema se esgotou em si mesmo na exploração ficcional e viu-se obrigado a voltar-se para o quotidiano, o cinema procurou a revitalização da ficção nos outros géneros, procurando novas fórmulas de comunicar com o público.

Essa regeneração passou pela incrementação do tecido criativo no documentário, agora um novo passo está a ser dado, o gosto por uma certa combinação dos géneros com o objectivo também de fortalecer a própria ficção.

Michael Moore é um empreendedor que visa filmar realidades angustiantes com uma dose de humor corrosivo que lhe cria tanto admiradores incondicionais quanto inimigos declarados.

• Qual considera ser a maior problemática dos documentários de Michael Moore?

Provavelmente a manipulação. Nem sempre negativa, às vezes serve para ajudar a construir a mensagem que ele procurar para o seu cinema e que representa o seu mundo social e político.

Do ponto de vista ético a realidade sairá deturpada, mas apresenta uma mensagem a publicar bem mais clara. Os poucos casos que me interessam na manipulação são a manipulação que funciona como um verdadeiro “show off”, como um espectáculo extra que ajuda a construir o filme. A dimensão da manipulação não deve extrapolar os próprios factos.

Não sou contra as reconstituições, encenações que nos levem a passar a ideia que queremos e que não temos acesso a esse material devido às mais diversas razões.

• Qual o valor documental que atribui ao trabalho de Michael Moore?

O valor exactamente que ele procura: o valor da Comunicação de ponto de vista muito parcial. Muitas situações têm um peso propagandístico muito elevado. Por vezes, esse valor soa comprometido, comprometido com a mensagem. É um mundo muito próprio, que pode fascinar e ferir em simultâneo. Parece-me que o documentário quando se revela panfleto partidário pode-se tornar perigoso. Mas, não deixa de ter um valor radicalmente revelador!

Michael Moore é um cineasta conhecido pelos seus trabalhos críticos em relação à política americana e auto-proclama-se porta-voz dos eleitores e já chegou a ser detido pela polícia por entrara em espaços públicos sem autorização.

Procura que o grande público conheça as tramas das grandes empresas e dos políticos insensíveis e indiferentes, obrigando, entre muitas outras coisas, a multinacional Nike a deixar de utilizar crianças como força de trabalho barata na Indonésia. É também este o valor do seu trabalho.

A obra de Michael Moore é polémica e simultaneamente essencial. O seu valor não deve ser apenas analisado pelo lado polémico, são vários os filmes produzidos e nalguns existe uma pertinência absoluta para se aprofundar determinados temas sociais e políticos.

• Acredita que a produção deste tipo de documentário se destina às massas? Se sim, quais as limitações a nível documental que isso implica?

Sem dúvida que se dirige às massas. É um posicionamento político que o dita, que vive uma ilusão e uma ilusão tendenciosa. Destina-se a todas as pessoas que se perdem nas fronteiras políticas que habitam. Pessoas indecisas que se tornam incrédulas perante tais cenários sensacionalistas.

Existe um «lado da barricada» onde Michael Moore nos quer e coloca. Este lado, pode implicar, se não houver uma boa gestão de conteúdos face à mensagem, um beco sem saída. Michael Moore respeitará as regras base do documentário, foge a algumas outras, mas não me parece fazer grande diferença. As suas pesquisas são profundas e denunciadoras, aterrorizam muita gente.

O que interessa é que Michael Moore é feliz a escavar assuntos de uma super potência, para a população da mesma e para o mundo exterior. E ele tem consciência total da sua repercussão a nível mundial.

Parece-me este posicionamento faz falta ao nosso documentário nacional. Faz falta comunicar, mas mais falta faz num país com tanta corrupção que não se faça de facto a exposição clara do tanto que não conhecemos.

• Considera que em alguns casos Michael Moore cria personagens? E que essa construção de personagens possa ser feita através da sua escolha de timing de elaboração de storyboard e de edição?

Michael Moore é uma personagem.

A criação de personagens faz parte da ideia de documentário. Quando elas são completamente ficcionadas podemos dizer que estamos num documentário ficcional, mas desde que o propósito seja levar o projecto a um porto de agitações que nos deixe a pensar. Documentário é também a interpretação criativa da realidade, pertence ao documentário a criação, a criação de uma «ficção presa ao real».

A ficção pode apoderar-se da realidade e vice-versa, essas são propostas que sempre me interessaram, o espectador apenas nãos e pode sentir defraudado com o filme, mas mais com o mundo. Também construo personagens nos meus documentários, sem esquecer storyboard e timing de edição, afinal estamos apenas a falar de cinema com uma linguagem própria, mas comum aos géneros.

• Podias falar um pouco sobre os intervalos e a publicidade (na televisão) ditarem, ou tentarem ditar, a duração dos documentários? E dar alguns exemplos concretos?

É uma realidade que está presente, tanto produtores como realizadores convivem diariamente com esse assunto, sem pressas, têm-se vindo a afinar este discurso e cada vez mais o documentário sabe que tem de se conformar com tamanha desilusão.

Conheço alguns casos em que a sugestão da redução de tempo dos filmes para os encaixar nalgumas grelhas de programação é ditada pela própria direcção do canal televisivo, de forma a se poder encaixar os filmes nos timings standards.

Alguns vêem os trabalhos chumbados dentro das televisões. Lembro-me de raras excepções, em que existiu a criação de um ciclo de cinema documental e o pacote de filmes foi respeitado em termos da duração dos filmes. Caso contrário o documentário vive na ditadura das grelhas televisivas.

Também já senti essa pressão. Foi um caso que não foi até ao fim porque não o permiti. Era um caso em que o canal televisivo queria exibir muito um trabalho nosso sem qualquer pagamento e o objectivo fácil era ficar com o material original, sobre um assunto delicado, no seu arquivo e a partir daí usá-lo como bem entender, não aceitei o jogo injusto que estava ali a nascer, não cedi a essa tentação. Mas lembro-me de ouvir programadores preocupados com um filme contemporâneo que é a preto e branco…

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